Esclerose Múltipla


Por Dra. Regina Maria Papais Alvarenga*

 

 Apesar do grande número de pesquisas, em pleno século XXI a esclerose múltipla descrita em 1868 em Paris por Jean Martin Charcot, permanece uma enfermidade sem limites nosológicos precisos dentro do grupo das afecções inflamatórias desmielinizantes primárias do sistema nervoso central, sem etiologia definida, sem um marcador biológico que a identifique.

Independente da sofisticação e alto custo dos exames complementares utilizados atualmente para a identificação de lesões na substância branca do encéfalo e medula espinhal (Ressonância Magnética), da síntese intra tecal de IgG (Liquor) e de lesões subclínicas afetando as principais vias centrais (potenciais evocados), o diagnóstico de Esclerose Múltipla (EM) permanece ainda hoje (Critérios de McDonald-2001) fundamentado em dados de anamnese e exame físico e na curva evolutiva dos sinais e sintomas neurológicos.

O acompanhamento a pacientes com esta enfermidade exige do neurologista um exercício diário de interpretação de dados semióticos para o diagnóstico sindrômico e topográfico das várias lesões que, disseminadas no tempo e no espaço, caracterizam a evolução em surto e remissão observada na maior parte dos pacientes atingidos por esta doença crônica e imunomediada do sistema nervoso central (SNC). Além disto, cada diagnóstico de EM necessita de um diagnóstico diferencial com todas as outras enfermidades do SNC que acometem preferencialmente a substância branca.
      A Esclerose Múltipla é a mais freqüente das enfermidades desmielizantes primárias adquiridas do SNC e representa o protótipo das doenças incluídas neste heterogêneo grupo, que tem como característica principal o envolvimento da mielina normalmente formada. São enfermidades de etiologia desconhecida, sendo necessário para seu diagnóstico a exclusão prévia de infecção, neoplasia, distúrbios metabólicos, doenças vasculares ou imunológicas que podem mimetizar seus sinais e sintomas.
    A Esclerose Múltipla se manifesta clinicamente pelo múltiplo acometimento de determinados sistemas já bem caracterizado por KURTZKE (FS): piramidal, cerebelar, tronco encéfalo, vias sensitivas, nervo óptico, vias de controle esfincteriano e sistema cognitivo (5%) por lesões inflamatórias e desmielinizantes que atingem simultânea ou sucessivamente áreas focais do SNC. A evolução desta sintomatologia é imponderável, excepcionalmente muito grave em alguns pacientes ao primeiro surto (formas agudas), provocando lenta e progressiva incapacidade funcional em outros (formas progressivas primárias) e, na maioria, instalando-se em episódios agudos ou sub-agudos de recorrência com remissão variável em tempo.

Estudos epidemiológicos indicam a importância de fatores geográficos ambientais e genéticos. A enfermidade tem uma distribuição geográfica bem definida, sendo sua prevalência maior nas áreas de latitude norte (países frios). Em qualquer latitude, negros correm menos risco do que brancos de desenvolver a doença, e mulheres são mais acometidas do que os homens. O início da doença ocorre habitualmente entre a segunda e a quarta década da vida, e o curso clínico evolutivo em surtos e remissões é constatado em cerca de 90% dos pacientes. Apenas 10% apresentam a forma progressiva primária.

Somente após a década de 90, estudos de séries de pacientes brasileiros com EM foram publicados. Dados do projeto Atlântico Sul, primeira pesquisa multicêntrica brasileira realizada sobre a história natural da enfermidade no Brasil, coordenada por neurologistas do Hospital da Lagoa/UNIRIO (RJ) com a colaboração do grupo de neuroimunologia da Academia Brasileira de Neurologia (1998) demonstram que no Brasil a EM afeta brancos e afro-brasileiros (negros e mulatos) indistintamente e que as manifestações clínicas e o perfilo genético se assemelham à forma "ocidental" da doença em ambas as etnias. Ao contrário do que se observa em países do hemisfério norte, em cerca de 40% dos pacientes, após dez anos de doença, o comprometimento neurológico é leve (forma benigna) e em cerca de 15% sucedem-se agravamentos, que em tempo variável e imprevisível ocasionam incapacidade funcional, especialmente ligada à deambulação (forma secundaria-mente progressiva). A forma neuro óptico mielítica recorrente ou "oriental" da EM ocorre em cerca de 15% dos casos com particular gravidade nos afro-brasileiros.
    Apesar do grande desenvolvimento realizado nas últimas décadas dos métodos complementares laboratoriais e neurora-diológicos, o diagnóstico de Esclerose Múltipla baseia-se ainda fundamentalmente em critérios clínicos e é especialmente difícil no primeiro surto, quando não há ainda nos antecedentes referência a episódios prévios de distúrbios neurológicos com remissões. Por esta razão, uma série de critérios internacionais vem sendo proposta a fim de possibilitar um diagnóstico mais seguro desta enfermidade. Os protocolos têm alguns pontos em comum: idade de início entre 10 e 50/60 anos; déficits neurológicos indicando comprometimento de vias longas indicando lesões separadas do sistema nervoso central; e necessidade de avaliação do paciente por neurologista experiente e que não consiga atribuir as alterações neurológicas a outras doenças do SNC. O critério mais difundido é de Charles Poser et al (1983) que utiliza dados clínicos e laboratoriais para o diagnóstico de EM. Em 2001, novo comitê internacional, liderado por Yan McDonald (2001), manteve como diagnóstico de Esclerose Múltipla dois surtos e duas evidências clínicas objetivas de lesões do SNC.
    Sendo uma doença de natureza inflamatória e imunológica, o tratamento no surto consiste na administração de drogas imunossupressoras, em especial a metilprednisolona em pulsoterapia (de 3 a 5 dias). Imunoglobulinas humanas EV também em pulsoterapia auxiliam na redução do processo de inflamação, em especial em outras formas de inflamação do SNC como a Encefalomielite aguda disseminada pós-infecciosa ou pós-viral (ADEM). Cada vez mais se evita o uso contínuo de corticoterapia oral pela grande quantidade de efeitos adversos e baixa eficácia.
    Diante de pacientes, com EM forma surto e remissão, com surtos freqüentes (3 por ano) e deambulação normal ou ainda pouco afetada indica-se o tratamento com drogas imuno moduladoras: Inteferon beta 1 A - 1 ampola 3 vezes por semana, Inteferon beta 1 B - 15 injeções subcutâneas por mês, Interferon beta 1 A - 1 ampola IM por semana, ou o Acetato de Glatiramer aplicado subcutaneamente todos os dias do mês. Os quatro produtos, embora de alto custo, são distribuídos gratuitamente pelo Ministério da Saúde a pacientes cadastrados em centros de referência. São igualmente eficazes, reduzem em cerca de 60% os casos de lesões inflamatórias na Ressonância Magnética e diminuem o número e a gravidade dos surtos clínicos. Os efeitos colaterais locais e gerais são bem evidentes nos primeiros meses de aplicação e variam de acordo com o paciente e nas diferentes apresentações. Não pode ser administrado a grávidas, nem em casos de depressão. O Acetato de glatiramer é praticamente livre de efeitos colaterais, porém sua aplicação é diária. Outros tratamentos imunológicos podem ser eventualmente indicados, sendo que o Mitroxantrone foi o quimioterápico mais recentemente liberado pelo Food and Drug Administration (FDA) para formas particularmente agressivas.
    Tratando-se de uma afecção imunomediada, crônica, com diferentes respostas clínicas o paciente deve ser acompanhado ao longo de sua vida por equipe neurológica eficiente e que identifique corretamente as diferentes fases da doença e possa intervir com todo o arsenal terapêutico disponível para controlá-la.

 

* Dra. Regina Maria Papais Alvarenga - Chefe do Serviço de Neurologia do Hospital da Lagoa (RJ) e Professora de Neurologia da UNIRIO

 

Informe Med-Lar

Boletim de Internação Domiciliar

N0 09 setembro/2003

 

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